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Os anos sem voar

Não contou até três e pulou.

Se contasse, não pularia. Houvesse um impasse, faísca de razão, certamente não pularia. Sob o sussurro da vertigem ainda rosnava a consciência. Na trama do próprio engano, disparou a pensar convulsivo: um remorso antigo, uma aflição constante, uma questão metafísica, um desejo latente, chocolate quente e pão com manteiga numa manhã de domingo nublado... E foi juntando tudo, tudo num só pensamento. Não aguentou: ruiu. Brecha para uma fé descabida. Por um instante acreditou em outra coisa a aguardar lá embaixo que não fosse o fim.

A vertigem então se calou. A vertigem é o sonho da queda. Diante da própria queda, do mergulho sobre o horizonte, atravessava sem trégua 40 andares de existência... Vívidos. Vislumbrava: geometrias, pontos coloridos, um zoom interminável. E moviam-se os pontos coloridos, como se providos de significado. Irreais, infimamente irreais, rodeavam a clareira de seu destino. Detratores, dali o apontavam, como se fosse ele a coisa irreal.

Mas já não importava, nada mais importava, nem o filme de sua vida. Não valia a pena ver de novo. Não valeu a primeira vez. Só importava a própria queda, protagonista de que era agora. O mundo suspenso à sua espera, o grito subindo ao seu encontro, tudo se rendia, irreversível, à realidade mais imediata. 

Mais um andar ficava pra trás. 

“Talvez seja o único modo de se descobrir capaz de voar.”

A ideia veio de súbito. Não menos súbito, pôs-se a realizar. Os braços se ergueram à frente, as pernas se esticaram atrás, e o corpo todo foi tomando o ângulo requisitado. A intuição lhe forneceu os vetores. Os músculos se contraíram. A camisa tremulava, vermelha, como a capa que poderia ter sido… Prosseguiu. E foi se livrando: dos deveres, das descrenças, de todo um futuro sem a sua anuência. Sentia que ficava mais leve. Fazia sua parte no acordo. Um acordo, sim! era disso que se tratava. Agora era só aguardar o aval do juiz do universo. 

Se então voasse, tudo fora um desperdício: 34 anos sem voar. 34 anos de tráfego terrestre, 34 anos de distâncias implacáveis. Na clausura cotidiana (o dia lá fora, a morte aqui dentro), cada janela foi um convite que se viu obrigado a recusar. E as mulheres? Foram-se todas. Sem sequer um passeio às estrelas. Estava certo de que, nas estrelas, cada desfecho seria outro... Quantos outros? Não soube dizer. Contou dois, dez, 25. Perdeu as contas. Não era bem isso. Um único e eterno desfecho se refazia em seus pensamentos. Redefiniu a questão: até quando? Se agora voava, bem aqui e agora. Era hora de romper com os limites que pela vida se impuseram.

Adiante avistou a muralha entre ele e o que poderia ter sido. Foi de encontro. Não resistiu: estava de volta ao instante do desengano de sua existência: 

…amor não basta, repetia ela, é de algo mais que eu preciso. E repetia a esquiva dos olhos, e repetia a boca constrita. Vermelho indiferença ainda era o seu batom. Indignação, houve da primeira vez, e houve muita até então. Contudo, 13 anos de ensaio, a deixa já lhe convinha: e você lá sabe do que precisa? 

E agarrou-a pela cintura. 

Nos olhos dela, assistiu à revolta cedendo ao assombro conforme subiam. O portão da casa, as quadras do bairro, tudo se apequenava nesse globo a seus pés. Por fim alcançaram o espaço. Ele era um corpo celeste. E ela se apegava ao corpo, como se fosse seu próprio planeta. Agora orbitavam um ao outro. A vertigem é o sonho da queda. E, não havendo mais Terra, a mulher se entregou à gravidade mais próxima…

 

Estatuto dos sonhos, artigo 9, parágrafo 6º: as quedas, mesmo as mais poéticas, tão somente conduzem ao despertar. Do 3º andar ao chão, ele nem teve tempo de reconhecer o fim.  

... 

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