leia um trecho da obra


 

Se alguma obra literária é longa demais para ser lida de uma assentada, devemos resignar-nos a dispensar o efeito imensamente importante que se deriva da unidade de impressão, pois, se requerem duas assentadas, os negócios do mundo interferem e tudo o que se pareça com totalidade é imediatamente destruído.

Edgar Allan Poe


te falei que o importante é competir
mas te mato de pancada se você não ganhar

Mamonas Assassinas



Capítulo 1: último capítulo

Este foi o último capítulo que escrevi.

Porque eu precisava de mais um capítulo. Mais quantos eu conseguir.

Pedi a um amigo que escrevesse um prefácio e ele perguntou, mas prefácio de quê? De um romance, respondi, e eu lá escrevo outra coisa? 

Ele olhou o número de páginas:

− Que romance mais desnutrido…

Pois aqui o nutro com mais um capítulo e, do prefácio do amigo, faço o segundo: 



Capítulo 2: prefácio

Pode parecer, pelo título, que se trata de um livro de autoajuda. E, de alguma forma, é mesmo: o autor sempre acha que está se ajudando. Tem a expectativa de que o novo livro acabe o consagrando de vez.

Quem me conhece sabe que eu jamais publicaria na amazon. Acreditava que o Vilela também não, mas eis aqui seu romance vendido (não no sentido de o leitor tê-lo comprado, mas de estar na vitrine dessa perfumaria). Ele vai tentar te convencer do contrário, de que ele luta contra o sistema, mas o sistema já nos venceu quando aceitamos os termos do seu contrato. É que esses contratos pedem nossos rabos, e só nos resta torcer pelo pau fino (porque o lubrificante e o carinho a gente já sabe que não vão vir).

Perdoem-me pelo nível da metáfora. Posso dizer que o Vilela é mais elegante. E ainda que o começo indique mais uma autoficção metalinguística, cheia de culpa e desculpa pela estrutura precária e repetitiva, que dá voltas e mais voltas e sempre volta a narrativa pra si, bem… De fato, é isso. Mas desta vez também tem vampiros! E elfos. E gatinhos. Uma história de amor e ficção científica. Um final brochante para ser comentado por várias e várias semanas.

Mais que isso eu não prometo.

E vocês já se acostumaram com menos.


Flávio Komatsu, São Carlos, 31 de agosto de 2023.

 

Capítulo 3: o começo

Tive a ideia de ficar rico. E de ficar rico com literatura. Não parece uma boa ideia a princípio, mas é justamente o desafio que me seduz. Ficar rico com literatura e às custas de um bilionário: então o prazer se junta ao desafio, e aqui estou eu dedilhando o teclado. PRÊMIO KINDLE DE LITERATURA… Cinquenta mil reais para o primeiro colocado. É uma quantia bem ridícula, então eu pretendo ganhar todo ano.

 

Capítulo 4: o prêmio

Os cinquenta mil também não farão nem cócegas no bilionário em questão. Sequer vão ser às custas dele. Caímos num golpe e pagaremos o pato. A gente se mata de escrever e a lojinha do sujeito expande o mostruário: A inscrição no Prêmio será realizada mediante a autopublicação de obras inéditas na ferramenta Kindle Direct Publishing da Amazon.com.br.

O dono da lojinha? Um tal de Jeff Bezos. Sim, muito famoso, e mais por ser rico que pela exploração. Mas a literatura é libertadora, é subversiva, é outra coisa… 

Me engano como todos os outros, e aqui estou eu buscando fama e fortuna. 

 

Capítulo 5: a obra

O “PRÊMIO KINDLE DE LITERATURA” objetiva premiar obras literárias inéditas na categoria Ficção/Romance escritas em Português do Brasil.

Pois este texto é inédito. Eu o escrevo para a ocasião. E como a ocasião é quem pede, convém chamá-lo romance. E é ficção, como tudo é ficção, inclusive este prêmio em que me inscrevo: o prêmio de literatura da maior lojinha de bugigangas do mundo.

Sim, autoficção. Falo de mim porque é mais fácil. Porque o leitor já está acostumado ao escritor em crise consigo e com o resto. O tema não importa. O que importa é a forma, o estilo, a polêmica. Só parecerá mais do mesmo aos insensíveis à arte de ser quem eu sou. 


Capítulo 6: o autor

A história então é sobre mim. Combo promocional autor-narrador-personagem. Sou Vileliano K., mais um escritor até então injustiçado. Mais um escritor à espera do fim, quando a crítica finalmente atenta ao velório:

− Tinha potencial para tanto…

Mas cedeu ao aluguel. Cedeu ao almoço diário. Uma viagem para Porto de Galinhas dividida em dez vezes no cartão. Invalidez por necessidade: passou num concurso público (e depois em outro, e depois em outro, até ascender a cinco salários mínimos). Desse modo, nunca fez Letras. Fez o que pôde. Leu o que deu. Chega aos quarenta anos com o repertório literário de vinte (o que, talvez, ainda permita a sensação de frescor destas linhas que escrevo).

 

Capítulo 7: no entanto

No entanto os critérios de análise do prêmio são o mérito literário e viabilidade comercial.

E ainda que a coisa enfadonha às vezes se confunda com o mérito literário, a vida de Vileliano K. não parece ter apelo comercial: assim pensa o leitor rolando sua tela no site da amazon.

Sim, você. O leitor médio, o leitor precipitado. Subestima a emoção desta vida, minha vida de funcionário público, isso quando não se dedica a caluniar esta instituição. Acha que privatizando tudo, tudo melhora, fica mais barato. Repete o discurso do dono da lojinha, sempre de olho em mais um mercado. Jeff Bezos dono da água, dono da terra, dono do ar. Cinco estrelinhas pra esse oxigênio: quase não cuspo sangue após respirar.

Isso, precipitado leitor, se eu ainda precisasse respirar… 


Capítulo 8: apelo comercial

Porque, além de funcionário público, faz cinco meses que também sou um vampiro. Sim, a criatura da noite, o imortal hematófago, o sedutor desbotado. Sei que parece uma afirmação abrupta, até mesmo conveniente: de repente sou essa figura tão propícia a um best-seller. Mas eu não pedi por isso, e as coisas absurdas também acontecem. Do nada. Da vida pacata. De um dia que era pra ser só mais um. Tudo começou naquela fatídica tarde de cinco de março… 


Capítulo 9: #vampiro

Eu disse cinco de março pra tornar a coisa mais verossímil. Mas o fato é que a coisa, mesmo sendo coisa de fato, não se fez memorável pela data, e sim pela mudança de vida.

Estava eu nesta sala, compartilhada com um colega de trabalho, cada um em sua mesa e, até então, focado na própria tela, quando o Clécio, meu colega, veio me então pedir um favor, pois toda seção tem um folgado e uma pessoa propensa a não dizer “não”:

− Queria te dar um presente: tenho dois convites pra festa hoje à noite. E um deles já é seu, claro, foi o primeiro em quem eu pensei. Mas o Mauro, putz, o Mauro (um coração enorme, a gente sabe), mas como chefe, surge com umas demandas em horários tão inconvenientes… Nem é coisa demais, ou que você teria dificuldade. Mas toma tempo, e em plena sexta, ou eu pego os convites ou eu termino isso. Por favor, não faça cerimônia: aceite, você merece. Só que eu preciso sair agora, e você tem que cobrir essa pra mim.

Por conta disso, estendi meu expediente. E o Clécio não voltou mais. Fugiu sem olhar para trás, como um garoto que pula o muro da escola: um garoto meio grisalho, com o colesterol alto e com a cara do Wando. Me ligou cinco horas depois:

− Vilela, cê ainda tá aí? Não vai conseguir chegar a tempo… Mas não se preocupe, vou fazer o seguinte: vou dar o convite pra uma amiga. O próximo é seu, meu querido, só não pode vacilar de novo.

Desligou antes que eu encontrasse palavras. Eu restava sozinho no departamento. Assim que pus o telefone no gancho, houve um apagão no prédio. A última coisa de que me lembro foi a dor pontiaguda que que se cravou em minha nuca.

Acordei em casa já no outro dia, severamente indisposto a luz. Também havia uma sede de sangue e um desprezo por toda e qualquer moral. Desde então eu chantageio o Clécio com todos os registros que fiz de suas faltas. Durmo no trabalho sob os óculos escuros e venho aguardando a aposentadoria eterna. 

...

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